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Mar de desilusões
Rodolfo de Souza
22/05/2024 | 21:25
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Fernandes


 O frio é intenso. Ouvi dizer que uma onda de calor leva sufoco a regiões mais ao norte. Nada que um bom ventilador não dê conta, claro. Chego a invejar essa gente que, logo ali, desfruta da segurança de seus lares. Pensamento bom que veio para acalentar-me o coração encharcado. Aliás, minha memória, um tanto desdeixada, parece que andou perdendo de vista a imagem de como era confortável o aconchego do meu lar, que se perdeu debaixo d’água. 

Noutro dia mesmo meu estado passou por um período de estiagem. Longo período de calor e secura dos diabos. Mas agora... 

Anoiteceu novamente, e nenhuma estrela aparece para presentear-me com um fiapo de esperança. Em seu lugar, grossa água despenca do céu escuro. Meio triste isso de sentir saudade da seca nesses momentos em que a matéria encharcada desmancha, e o que sobra dela flutua e corre sem destino certo. 

Já vi todo tipo de objeto à deriva nesse mar em que se transformou a minha vida. Diga-se de passagem, já vi de tudo boiando: carros, animais e até gente que sucumbiu à voracidade da intempérie sem fim. 

Minha casa se foi de roldão. Ela e tudo o que havia nela. Agora, só disponho deste telhado que, pensando bem, nem é meu. Tampouco de algum conhecido. O rio, ao qual se dava o nome de rua, me trouxe até aqui. Antes, andávamos pelos passeios, hoje nos alegramos com um telhado que teima em permanecer fora da água. Por sorte, há outro, qualquer coisa mais alto, que me oferece abrigo parcial, porque a tormenta não cessa. Ela é cruel. Parece nos castigar pela sandice humana que insiste em colocar em xeque a existência da natureza. 

Quanto à proteção, nem sei mais se a quero, nem sei mais se desejo sentir novamente o calor do sol. Devo ter me tornado um bicho aquático, afinal. Ou um louco de corpo meio anestesiado que se acostumou com a dor e o frio.

Volta e meia vejo helicópteros sobrevoando o alagamento para ver se encontram alguém precisando de socorro. Não me viram. Não me importo. A tremedeira passou, e a água tornou-se, de alguma forma, minha companheira.

Estou certo de que andam dizendo nos noticiários que a chuva matou e desabrigou muitas pessoas. Mas esta conta, cabe ao ser humano pagar, uma vez que a loucura em que se meteu o clima se dá pela atuação inconsequente de alguns que, em nome do ganho fácil, resolveram afundar o barco do qual também são passageiros. A eles cabe a responsabilidade pelo desespero de tanta gente.

A chuva aperta. Penso que não cessará jamais. Estranho como o pensamento se torna tão alterado quanto o clima, nessas horas.

Tenho sede. Aparo com as mãos a água que se precipita, para vertê-la goela abaixo.

Fome eu já nem sinto mais. No começo, quando não havia mais o que comer, ela veio forte. Depois, se transformou em dor. Agora, não me incomoda. Está quieta, à espreita. 

Estou certo de que a solidariedade humana deu as mãos para correr em nosso socorro, e que muito se tem falado a respeito. Mas tudo isso há de passar, e os homens logo se esquecerão e darão continuidade à sanha de destruir as florestas, de deitar por terra o sonho de preservação que muitos ainda acalentam. E é de conhecimento do algoz que seus desmandos resultarão em novas tragédias que ceifarão vidas e farão verter lágrimas. Mas ele não se importa. 




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