A tarde segue quente. Tão quente que o Sol parece dirigir só para a Terra, sobretudo para esta terra, todo o seu resplendor. Mesmo porque, nessas horas fica difícil imaginar um lugar no planeta que desfrute de temperatura mais amena, em que a luz e a sensação de se estar num forno não sejam uma constante na vida das pessoas. Tudo é calor, afinal, nesta tarde que encerra o verão.
E o trânsito lento na grande cidade torna as coisas ainda mais difíceis, já que motores não apreciam a lentidão e esquentam e poluem, arremessando para a atmosfera toda a sua raiva em forma de dióxido de carbono, pecado mortal dos tempos modernos.
E do asfalto, um tanto derretido, se ergue aquele brilho ondulado, resultado do encontro do ar quente que sobe com o ar frio que desce.
O caminhão passa no cruzamento ali adiante, soltando fumaça que, mesmo estando distante parece realçar o calor e sufocar. O veículo carrega sucata que brilha ao Sol. De onde estou posso percebê-la, uma vez que a carga se projeta para o alto, desafiando a fiação que também é quente.
A moto para ao meu lado, e o seu condutor denota certa aflição, posso notar. Talvez esteja inconformado com o fato de, apesar de motoqueiro, obedecer à regra do trânsito que determina que se pare no vermelho. É possível que esteja tomado por um sentimento de que trai a classe quando respeita o semáforo. Posso sentir isso na aceleração contínua. Diga-se de passagem, não sei por que motociclistas precisam acelerar e acelerar enquanto aguardam. Uma espécie de ritual de impaciência, talvez.
E o tráfego segue devagar no final da tarde quente como o diabo. É a fumaça, é a buzina, é o calor...
Espera-se com ansiedade a noite. Quem sabe o ocaso traga consigo uma atmosfera mais refrescante.
Mas ainda é dia, e o céu azul parece ter expulsado todas as nuvens com receio de que apaguem o Sol. A culpa é do El Niño, do desmatamento desenfreado, do desaparecimento da inteligência humana. O que terá sido feito dela, diga-se de passagem?
O carro parado ali adiante tem música alta. Não, não há suavidade na melodia. É qualquer coisa que agride os ouvidos e parece potencializar o calor insuportável.
Dentro dos veículos, gente. E dentro de veículos e de gente, um frenesi de partículas elétricas que se deslocam de forma tresloucada só para chatear e produzir ainda mais calor. Calor no coração, por exemplo, em que torvelinhos de sentimentos e paixões também não produzem outra coisa senão... calor.
A freada brusca seguida da buzina e do palavrão irritam, tal qual o suor que gruda no corpo.
E tudo isso conduz os pensamentos que trafegam ligeiros pela mente, carregados de muita energia. Neles, além do trânsito, do calor e da incerteza pairam os voos dos foguetes que seguem na sua missão de ceifar vidas por meio do fogo, assim como as centenas, talvez milhares de balas que silenciam o concerto no teatro. Ou antes, transformam a música numa sinfonia de gritos e desespero.
E onde estará o calor humano em todo esse universo de calores?
Não está. É possível até que nunca tenha estado... em parte alguma.
Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André.
É professor e autor do blog cafeecronicas.com
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